terça-feira, 6 de outubro de 2009

RODA VIVA!!!



Na UTI os médicos tentavam reanimá-lo, e operavam para tirarem as balas que estavam cravadas em seu corpo. A família apreensiva esperava aflita por notícias, a mãe rezava e chorava, pedindo a Deus para salvar seu filho, os outros tentavam se acalmar entre si, enquanto os médicos faziam tudo que estava ao alcance. Depois de horas de cirurgia os médicos informam que haviam tirado as balas, mas a situação ainda era delicada, Alexandre ainda corria risco de morte, e ficaria na UTI até sair do coma. Muitos dias depois ao sair da UTI para o quarto, revê emocionado os familiares, principalmente a mãe e o pai, que tanto amava. Mas descobre entre a raiva e a impotência que havia ficado tetraplégico. Reviu toda a cena de novo em sua mente, da briga, da discussão e dos tiros.


“Minha vida acabou mãe. O que vou fazer sem poder andar e sendo um inválido agora?”


“Não fale assim meu querido, nós estamos ao seu lado e vamos lhe ajudar nessa sua nova vida. Nós te amamos muito e você vai superar tudo isso, nós vamos estar junto com você. Não chora assim filho, me corta o coração.”


“Aquela desgraçada acabou com minha vida, o que eu vou fazer agora?”


“Agora você vai refazer sua vida meu querido, a notícia boa é que ela já foi presa, e vai responder pelo crime que fez na prisão, já foi negado o habeas corpus dela. Mas agora, vamos pensar só em você, você ainda é muito novo, tem uma vida inteira pela frente, é bonito, inteligente, vai readaptar sua vida a essa nova condição.”


Seis meses depois de sair do hospital, aprendendo a se readaptar com as novas realidades, entre ódio, mágoa, depressão, impotência, tempestades de sentimentos dentro de si, resolve retomar sua vida, deixar de sentir pena de si mesmo e ir à luta. Começa a fazer terapia, vai falar com seu antigo chefe para voltar a trabalhar, retoma a faculdade, começa a olhar novamente para o mundo, e decide viver e ser feliz, mesmo em cima de uma cadeira de rodas. Volta a trabalhar seis horas diárias numa concessionária de carros importados, gostava de vender e trabalhar com pessoas. Retoma o curso de direito. Um ano e meio depois assiste ao julgamento de Patrícia, sua ex-noiva, que por vingança e ciúmes quase o matara. Vê realizado ela ser condenada a vinte anos de prisão em regime fechado. Sentiu um alívio ao sair do julgamento, mas ainda sentia muito ódio dela, levaria muito tempo até conseguir perdoá-la. Pelo menos pagaria pelo crime que cometeu isso já era alguma coisa.


Mesmo em terapia, ainda tinha muita dificuldade de se relacionar, não conseguia sair, nem tinha namorado ninguém desde o acidente. Tinha colocado na cabeça que nenhuma mulher iria querer namorar um inválido. Era muito difícil aceitar que aos 30 anos estava privado de ter filhos e de ter uma vida sexual, por culpa de uma louca insana. Tinha acabado seu noivado com Patrícia justamente porque ela era doente de ciúmes, era excessivamente dependente dele, mimada e imatura, não era o tipo de mulher que queria para dividir sua vida. Queria casar com uma mulher independente, segura de si, equilibrada, carinhosa, tudo que Patrícia não era. Viveram um namoro turbulento, com vários rompimentos e brigas, um inferno. Por pressão da família dela e por uma gravidez indesejada, noivaram. Alexandre sentia-se aprisionado e infeliz, não queria casar obrigado, sem amor, só por uma imposição familiar e convenções sociais. Mas sempre que pensava em terminar de vez o noivado pensava em seu filho que estava a caminho. Uma noite voltando de uma festa, os dois embriagados, Patrícia fez questão de dirigir, apesar dos protestos de Alexandre ela voltou dirigindo e bateu em outro carro, virou e os dois foram parar no hospital. Alexandre sofreu algumas escoriações, nada grave, mas com ela foi mais sério, além de ter perdido a criança. Foi a gota d’água que faltava para acabar de vez o noivado.


Na sua turma de direito, tinha feito muitas amizades, lhe fazia muito bem estudar. Sempre que tinha trabalho de grupo para fazer Laura ficava em seu grupo, começava uma amizade bonita, sempre estudavam juntos, começaram a sair para jantar, conversar e sentiam nascer um amor no coração dos dois. Alexandre sentia-se deprimido por estar apaixonado, pois tinha muito medo de não ser correspondido e de viver condenado à solidão. Depois de várias semanas observando-o, vendo triste, desanimado, calado, ela pergunta o que estava acontecendo.


“Estou a dias te observando e percebo que você está triste, calado, parece que está me evitando. O que está acontecendo? Eu fiz ou disse algo que lhe magoou?”


“Não Laura, não é nada com você querida, são meus processos internos. Não se preocupe.”


“Claro que me preocupo. Não gosto de vê-lo triste, eu posso fazer alguma coisa para tirá-lo dessa tristeza?”


“Pode. Quando terminar a aula vamos jantar naquele restaurante chinês que você adora? Que tal?”


“Vou adorar, além de estar morrendo de fome, quero conversar com você uma coisa muito importante.”


Já no restaurante, escolhem um delicioso yakisoba com rolinhos primavera e um vinho tinto. Conversam sobre estudos, família, trabalho, até Alexandre perguntar o que ela gostaria de falar.


“Eu estou preocupada com você, não gosto de vê-lo triste, eu posso ajudá-lo?”


“É que às vezes eu ainda sinto muito ódio, e sinto muita revolta por estar nessa cadeira de rodas, sinto como se estivesse condenado à solidão para o resto de minha vida, e isso me deixa deprimido.”


“Por que condenado à solidão? Tudo bem que não deve ser fácil para você aceitar essa tragédia e viver nessa cadeira de rodas, mas você é jovem, bonito, inteligente, tem uma vida inteira pela frente, por que esse pessimismo?”


“Que mulher vai querer namorar um aleijado como eu? Você acha que alguma mulher em sã consciência vai querer casar comigo e passar a vida ao lado de um homem que não é mais homem, que não pode ter filhos, que sempre vai precisar de ajuda para algumas coisas?”


“E o amor? Você não acredita mais no amor Alexandre?”


“Sinceramente Laura, não. Eu acredito que eu possa amar, mas não acredito que possa ser amado, é nesse sentido que eu falo.”


“Eu fico decepcionada ouvindo isso. Não sei se isso é pessimismo, auto-compaixão, falta de fé na vida ou tudo junto. Então você nunca amou na vida. O amor está além do físico, o amor transborda, extravasa, transcende o belo e o feio, a saúde ou a doença, as dificuldades. Quando a gente ama, ama o outro pelo que ele é enquanto Ser, não pelo que ele tem, nem como ele está. O amor ajuda a superar as dificuldades Alex.”


“Você fala e seus olhos brilham, até me emociona. Você está amando Laura? Porque este brilho no olhar só quem ama tem.”


“Estou Alex. Mas acho que ele não me ama.”


“Ele já tem namorada?”


“Não.”


“E por que você acha que ele não te ama? Você já conversou com ele?”


“Ele se fechou para o mundo, estou tentando chegar ao coração dele, mas ele não percebe, ou não quer perceber. Ele não acredita mais que ele é um homem encantador, maravilhoso, capaz de fazer uma mulher feliz, só porque é um cadeirante. Acorda Alex, será que você não percebe que eu te amo e estou tentando de mostrar isso desde o começo do semestre. Será que é tão difícil você se permitir ser amado? Perceber que você perdeu a locomoção, não o coração.”


“Nem acredito o que acabei de ouvir. Você está falando sério?”


“Não, estou brincando. Você acha que eu brincaria com um assunto sério desses?”


“Desculpa Laura, é que me pegou de surpresa. A minha tristeza desses últimos tempos era justamente porque me apaixonei por você e não tinha coragem de falar pra você, eu achava que você só me via como amigo. e esse sentimento estava me angustiando. Lembra aquele dia que fui estudar na sua casa e sua mãe só falava no mauricinho do Jackson, que é filho de senador, que é louco por você, ela não parava de falar nele e que queria que você o namorasse, eu estava enlouquecendo ouvindo aquilo, só não sai correndo porque não pude.”


“Você já consegue fazer graça com sua condição, já é um bom sinal. Eu me lembro daquele dia, mas você viu que eu nem dei atenção a ela? O Jackson não me interessa, não é ele que eu quero, é você Alex.”


“Mas ele foi lhe pegar na universidade umas três vezes, eu achei que vocês estivessem namorando, por isso que fiquei triste.”


“Por que você não me perguntou?”


“Não tive coragem. Além do mais, não sou filho de senador, não moro no Lago sul, naquelas mansões maravilhosas, e tenho certeza que sua mãe não aprovaria nosso namoro. Mas mesmo assim, você quer me namorar Laura?”


“Quero muito meu querido. E quanto a minha família, não se preocupe, pois com o tempo eles vão aceitar, eu espero.”


Jantaram, brindaram e começaram um namoro que enfrentaria muitos preconceitos, mas também causaria admiração. Assumiram o namoro na universidade, e na família dele, onde foi muito bem recebida. A mãe de Alex era uma mulher de fibra, de espírito nobre e acolhedor, logo acolheu Laura como uma filha. Já com a família dela foi uma situação mais delicada. Laura contou para os pais que estava namorando, e a mãe logo deu os parabéns pelo namoro com Jackson.


“Mãe, eu não estou namorando Jackson, eu estou namorando Alex.”


“Eu não acredito que você vai trocar um homem rico, bonito, um dos solteiros mais cobiçados de Brasília, que pode lhe dar uma vida de rainha, por um rapaz de classe média, e ainda por cima aleijado, não acredito, é demais para minha cabeça. Eu não apoio esse namoro.”


“Claro que a senhora não apóia. Só o que lhe interessa é o dinheiro. Não importa como a pessoa é, contanto que tenha dinheiro é o que vale pra senhora, pode atear fogo em índios no meio da rua, mas tendo dinheiro é o que lhe importa não é? Não importa se vou ser feliz ou não, o que importa é ter carro do ano, roupa de griffe e viajar para Europa todo ano. Eu sinto muito lhe informar, mas os meus valores são totalmente diferentes dos seus, graças a Deus. E se a senhora não apóia, eu sinto muito, mas isso não vai mudar minha decisão, pois eu amo o Alex.”


“Pois não conte com o meu apoio. Vão viver de quê? E você nunca vai poder ter filhos com ele, já pensou nisso?”


“Já pensei nisso. Isso não vai ser problema. É mais doloroso ouvir seu preconceito e sua mesquinhez do que saber que não vou poder ter filhos.”


“Você é uma decepção para mim, sempre faz tudo errado, seu prazer é me tirar do sério, quando você estiver infeliz, não venha chorar no meu ombro.”


“Muito obrigada dona Tereza.”


Laura chegou à casa de Alex aos prantos, ele tinha saído, tinha ido para a terapia, então ela desabafou com a sogra, estava arrasada com sua mãe. Sempre sentia que a mãe preferia a sua irmã, que era igual a ela, fútil, interesseira, superficial, materialista, o contrário de Laura. Sempre tivera uma relação difícil com as duas. Só seu pai lhe entendia, era um homem de origem humilde, que venceu na vida trabalhando, era um pai maravilhoso. Foi o único que apoiou o namoro. Sempre sentiu o preconceito das pessoas, como o diferente é difícil em nossa sociedade. Quando fizeram um ano de namoro, resolveram noivar, e fizeram um jantar na casa dele, convidaram alguns amigos mais queridos, toda a família de Alex e a família de Laura, mas só o seu pai foi. Sua mãe mais uma vez tinha conseguido magoá-la fundo. Foi um jantar muito agradável, trocaram alianças, beberam, comemoraram, estavam muito felizes. Ela dormiu na casa dele, e ficou alguns dias na casa dele, enquanto terminavam de pintar o apartamento que Alex tinha, e estava fechado, quando terminou a pintura Laura já fez questão de mudar, pois não suportava mais ficar perto de sua mãe. Seis meses depois casaram na igreja, numa cerimônia simples e bonita. Ela entra na igreja de braços dados com seu pai, estava linda num vestido branco e muito feliz, pois amava muito Alex e sabia que seriam felizes. O sermão do padre foi muito bonito, falando do amor, emocionou a todos. A cara amarrada da mãe não conseguiu estragar sua felicidade, mas nublara sua alma. Ela saiu do altar sentada no colo dele na cadeira de rodas, uma cena linda e inusitada. Na lua-de-mel que seria num hotel cinco estrelas em Brasília mesmo, pois decidiram não viajar naquele momento, eles viveram momentos de pura felicidade, de entrega e de união plena, pois mesmo não tendo uma vida sexual “normal”, (sexo genital), estavam descobrindo formas de se amarem, pois o corpo todo pode ser imantado de desejo, o prazer está em toda a pele, em todas as partes do corpo, e não tem afrodisíaco melhor que o carinho e a entrega ao outro. Quando se larga o preconceito, inúmeras descobertas são possíveis, caminhos são criados, é possível desfrutar da felicidade de estar vivo, de poder amar, de Ser com o outro.


Laura estava com uma causa de adoção, e teve que ir visitar o orfanato que a criança estava. Foi junto com sua cliente, fez a visita e conheceu várias crianças abandonadas, mas duas em especial mexeram com seu coração. Fernando e Bia eram gêmeos, a mãe não sabia quem era o pai e alegava não ter condições de criá-los, deixou os dois lá e nunca mais apareceu em oito anos. Laura se apaixonou pelos dois no momento em que os viu. Conversou com eles, brincou e prometeu voltar. Dois dias depois voltou para vê-los, levou biscoito, chocolate e ficou mais de uma hora com eles. Passou dois meses visitando as crianças, criou vínculos. Resolveu conversar com a Assistente social e dizer que queria adotá-los. Naquela noite, abriu seu coração para Alex, que a princípio teve medo se as crianças iriam aceitá-lo, mas viu como Laura já amava os dois, e decidiram dar entrada na adoção. Alex foi conhecê-los, e entendeu o amor de Laura. Foi capturado pelo olhar de amor nos olhos deles, que encheram seu coração. Depois de conseguirem a adoção legal, formaram uma família, que como todas as que existem, passaram por turbulências, ajustes, desajustes, encontros e desencontros, mas sempre tendo a felicidade como guia. A família de Alex e o pai de Laura sempre presentes, compartilhando da felicidade e da vida dos quatro, menos a irmã de Laura que casou e foi embora para o exterior e a mãe que vivia amargurada, sozinha e refém do seu egoísmo, incapaz de olhar o mundo com olhos de misericórdia e compaixão. O destino dos secos de alma é a solidão.

JANAINA ISMENIA DE MELO.
(foto tirada da internet).

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