quarta-feira, 8 de junho de 2011


AS PALAVRAS QUE NASCEM NO MEU CORAÇÃO



TENTO COLOCÁ-LAS EM VERSOS


MAS NÃO ME TRAZEM PAZ


PELO CONTRÁRIO


ATORMENTAM MEU CORAÇÃO


TUDO QUE ESCREVO


É COMO SE FORMASSE UM CORDÃO


CORDÃO DE DOR E TRISTEZA EM FILA DE LETRAS TRANSVERSAS


UMA PALAVRA PUXA A OUTRA NUMA FILA QUILOMÊTRICA DE NEM SEI O QUÊ


MAS NÃO É POESIA


É ANTES AGONIA


ALGUMAS PALAVRAS ENGULO COM LICOR


OUTRAS EU CUSPO COM HORROR


E OUTRAS GRITO, GRITO, GRITO ATÉ SUFOCAR A DOR


MAS SEMPRE ELAS DIZEM DE MIM E DE QUEM SOU


NÃO CONSIGO ME ESCONDER


ELAS SEMPRE ME DENUNCIAM


ME EXPÕEM E DIZEM QUEM SOU.


JANAINA ISMENIA DE MELO.
(imagem tirada da internet)

SILHUETA DE NUVENS!!!





SOPRO AO VENTO COM FORÇA


E FAÇO SILHUETAS DE SORRISOS EM NUVENS


QUE SOPRO PRA TI


QUANDO OLHAS O CÉU


VÊS MEU SORRISO E NÃO ACREDITAS


E DIZ PRAS NUVENS NÃO ME FALAREM DE TI


NEM AS NUVENS, NEM A BRISA ME DIZEM DE TI


FICO TRISTE E CHORO


CHORO COMO CHUVA TORRENCIAL


QUE MOLHA TUA VIDRAÇA


MAS NÃO AMOLECE SEU CORAÇÃO


E FICO AQUI NA SOLIDÃO


VOU MUDAR A ROTA DO MEU CORAÇÃO


CHEGA DE SOFRER EM VÃO.


JANAINA ISMENIA DE MELO.
(imagem tirada da internet).


ESCREVO NO AUGE DA DOR



FÚRIA DE SENTIMENTOS


CAOS


DOR


SOU A CHEIA DO RIO EM MOVIMENTO


RIO QUE QUANDO ENCONTRA OBSTÁCULO FICA PROFUNDO


PROFUNDO COMO A DOR DA ALMA EM SOFRIMENTO


ESPALHO LÁGRIMAS PELAS RIBANCEIRAS


RIO DE SENTIMENTOS


TUDO MISTURADO COM A ÁGUA E O VENTO


QUE ME LANÇA EM MOVIMENTO


ME JOGO NO MAR PARA MORRER NA AREIA.


JANAINA ISMENIA DE MELO.
(imagem tirada da internet)

SORRISO CLANDESTINO...



Eu carrego comigo esse sorriso clandestino


De roubar olhares e sorrisos proibidos


Carrego na pele


O desejo de misturar nós dois em minutos roubados da madrugada


De forma clandestina driblando o interdito imposto de fora, mas sempre burlado...


Eu carrego comigo essa constante teimosia de te buscar


Pelo vento


Pelo mar


Pelos meus pensamentos


E ganhar sorrisos e beijos em pensamentos


De forma clandestina vivo em ti – nem suspeitam...


O proibido é sempre desejado...


Carrego esse sorriso clandestino por tê-lo ao meu lado


Mesmo metafisicamente


E quem disse que é impossível????


JANAINA ISMENIA DE MELO.
(imagens tiradas da internet)

FIM DE FESTA!!!



AGITOS E SONS
TANTA GENTE TANTO GRITO
TANTO BARULHO PARA MEUS OUVIDOS SENSÍVEIS QUE ADORAM SILÊNCIO
E MEUS OLHOS QUE ADORAM CALMARIA
ALÍVIO
CACOS
VIDROS
RESTOS DE COMIDAS
RESTOS DE DESTINOS
RESTOS DE SONHOS DERRAMADOS COM VINHO PELA GRAMA ORVALHADA
RESTOS DE CEIA E DE VINHO
CONTORNOS DE BOCAS E OLHOS SOMBREADOS PELO AR
TANTOS VIVEM DE FANTASIAS ILUSÓRIAS E MENTIRAS
MINHA FESTA É VER O BRILHO DOS OLHOS E O SORRISO DE QUEM AMO
NÃO SOU DADA A MENTIRAS DE PURPURINA EM FESTAS DE ILUSÕES.
EU  PREFIRO AMAR!!!!


JANAINA ISMENIA DE MELO.
(imagens tiradas da internet)

LUA SOBERANA




LUA CHEIA SOBRE OCEANO PRATEADO
EM PLENA MADRUGADA
O MAR SERENO É ESPELHO DA LUA ESTRELADA
LUA AMARELADA PARECENDO UMA PISCINA DE MEL
MEL PRA ESCORRER POR TEU CORPO
FAZENDO UM CAMINHO PERIGOSO-PROIBIDO-DELICIOSO...
QUE VOU SEGUINDO...
MINHA BOCA NA SUA PELE AÇUCARADA
PURO PARAISO
BRINCAMOS DE LUA SOBERANA
DORMIMOS AGARRADOS
ACORDAMOS COM O SOL SORRINDO DE NOSSAS ESTRIPULIAS
DE AMANTES APAIXONADOS...


JANAINA ISMENIA DE MELO.
(imagens tiradas da internet)

Sonhos sulcam caminhos na areia

Veredas de segredos
Chamas de esperança
Esperança de encontrar teu olhar
Onde andas?
Não sei (bem o queria)
Mas seu sorriso, esse louco intruso dos meus devaneios
Que me revira pelo avesso em viagens-devaneios
Fantasias inconfessáveis de ti...
Com lua cheia e oceano de mar e de desejos...
Saio de mim e passeio em ti sem saberes
Quando tua pele arrepiar... sou eu brincando de te amar em pensamento...


JANAINA ISMENIA DE MELO.
(imagens tiradas da internet).

Casinha simples do interior

Pela janela vejo o sol se despedindo

Um céu rajado de azul violáceo

Trazendo lembranças multicor

Cheiros e sons da memória

É tão doloroso

Só quem já amou

Pode entender a dor

Dor da solidão

Dor do desamor

Mas tudo já passou

Não olho mais pra trás

Só quero olhar para o horizonte ensolarado do agora

Nada de passado.

JANAINA ISMENIA DE MELO.
(imagens tiradas da internet)

FOUCAULT E A VIOLÊNCIA.

Eduardo Sugizaki



A palavra ‘violência’ não é um conceito na filosofia de Foucault. Seu aparecimento mais significativo em discurso eminentemente conceitual ocorre quando da tentativa do filósofo francês de explicitar o que entende por poder e, mais especificamente, por relações de poder.
Para desubstancializar a noção de poder, Foucault (1995, p. 242) nega que exista o poder como tal, algo que pudesse ser concentrado ou distribuído. Nega-se também a analisar o exercício do poder tomando como ponto de partida sujeitos substantivados, indivíduos ou coletivos, detentores do poder anterior à relação.
Desubstancializar o poder é uma operação que implica diretamente na ruptura com a tradição contratualista, especialmente, com Hobbes, porque significa denegar uma análise que parta do sujeito do consentimento e sua renúncia a certos direitos ou poderes transferidos ou delegados a outrem. Como não há sujeito de consentimento também não há manifestação anterior ou permanente de consenso.
Mas, se o poder não é uma substância e não se funda no consentimento, ele não seria pura violência? Foucault propõe-se essa pergunta.
Será que isto quer dizer que é necessário buscar o caráter próprio às relações de poder do lado de uma violência que seria sua forma primitiva, o segredo permanente e o último recurso – aquilo que aparece em última instância como sua verdade, quando coagido a tirar a máscara e a se mostrar qual é? (Foucault, 1995, p. 243).
A resposta de Foucault a esta questão é negativa porque fazer da violência a forma primitiva do poder iria remeter a análise, mais uma vez, a uma compreensão substantivada dele, a uma análise mecânica do poder. Isso parece evidente no uso que Foucault faz da palavra ‘violência’ na frase a seguir.

Essa resposta negativa, entretanto, não implica um conceito de violência próprio da filosofia de Foucault. Trata-se, aí, de uma delimitação do sentido da palavra violência no plano do uso dicionarizado. O caráter mecânico de uma ação dita violenta está marcado pelo vínculo dicionarizado entre vilence e e o uso da força, como em Émile Littré. Através da definição do verbete ‘violência’ do Dizionário di politica podemos recolher todos os elementos da definição usada por Foucault.
Por Violência entende-se a intervenção física de um indivíduo ou grupo contra outro indivíduo ou grupo (ou também contra si mesmo). Para que haja Violência é preciso que a intervenção física seja voluntária: o motorista implicado num acidente de trânsito não exerce a Violência contra as pessoas que ficaram feridas, enquanto exerce Violência quem atropela intencionalmente uma pessoa odiada. Além disso, a intervenção física, na qual a Violência consiste, tem por finalidade destruir, ofender e coagir. É Violência a intervenção do torturador que mutila sua vítima; não é Violência a operação do cirurgião que busca salvar a vida de seu paciente. Exerce Vilência quem tortura, fere ou mata; quem, não obstante a resistência, imobiliza ou manipula o corpo de outro; quem impede materialmente outro de cumprir determinada ação. Geralmente a violência é exercida contra a vontade da vítima. Existem, porém, exceções notáveis, como o suicídio ou os atos de violência provocados pela vítima com finalidade propagandística ou de outro tipo. (Stoppino, 1992, p.1291).
Essa definição enfatiza a coação pelo uso da força, a ação mecânica sobre o corpo e especifica o jogo entre o que é o voluntário e o que é involuntário como condição para caracterizar o ato violento. A violência implica um pólo passivo.
Foucault (1995, p. 243) prefere adotar como foco da análise do poder a relação entre pólos ativos. Esses pólos, entretanto, não devem ser pensados como potências prévias ou como repositórios de poder mesmo na anterioridade da relação de poder. Para satisfazer esses pré-requisitos de ordem ontológica, Foucault propõe a análise de uma relação de poder que como modo de ação que não age diretamente e imediatamente sobre os outros, sobre corpos, mas que age sobre a ação.
Isso não significa negar que o funcionamento do poder implique o uso da violência e a aquisição dos consentimentos. Um e outro são instrumentos ou efeitos simultâneos. Mas para Foucault, é apenas no limite que o funcionamento do poder coage ou impede absolutamente. Nesse limite extremo, há uma ação sobre um corpo e não mais uma ação sobre uma ação. Mas esse limite extremo é já externo à relação de poder, na conceituação própria de Foucault. Violência é, então, pura coação e não mais relação de poder.
Sabe-se que Foucault (2004a, p. 1-4), desde a publicação de Vigiar e punir, propõe-se a fazer história das relações de poder e que, com um novo olhar retrospectivo coloca As palavras e as coisas na esteira da preocupação com o estatuto político da ciência e as funções ideológicas que ela podia vincular, ou seja, em uma articulação entre saber e poder. Ele descobre, agora, um ponto de confluência, o poder, entre História da Loucura, Nascimento da clínica e As palavras e as coisas. Se esse ponto não era evidente é porque ele havia sido isolado de uma forma deficiente.
Se o que Foucault fez foram história das relações de saber e poder e se o que ele entende por violência é algo que se dá no limite exterior da relação de poder, entende-se porque a violência não tenha sido nunca o ponto de partida de suas análises.
Por ter centrado a análise das relações de poder nas ações sobre ações, Foucault escreveu histórias das conduções das condutas. Para que as condutas possam ser conduzidas é preciso que haja um certo campo de possibilidades, onde diversas condutas, diversas reações, diversos modos de comportamentos possam ocorrer e apenas no limite e como saturação é que a coerção pura e simples da violência aparece e encerra o jogo da relação de poder, que é ação sobre ação e implica um campo de possibilidades plurais (Foucault, 1995, p. 244).
No curso Em defesa da sociedade, Foucault (2000, p. 28 e 30) esclareceu algumas de suas razões para a escolha desse método de análise. Em seu entendimento, a polêmica dos contratualistas contra os juristas do rei, é prisioneira de uma análise do poder que não é mais que uma análise da soberania. Se os juristas do rei quiseram justificar o poder soberano, os juristas e filósofos contratualistas não pretenderam mais do que o limitar. Ora, o que é soberania no entendimento de Foucault? Na última aula desse curso, ele diz:
O direito de vida e de morte só se exerce de uma forma desequilibrada, e sempre do lado da morte. O efeito do poder soberano sobre a vida só se exerce a partir do momento em que o soberano pode matar. Em última análise, o direito de matar é que detém efetivamente em si a própria essência desse direito de vida e de morte: é porque o soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida (FOUCAULT, 2000, p. 286-7).
No seu conjunto, o curso de 1976, Em defesa da sociedade, é um esforço para desqualificar uma análise que parta da soberania. A razão disso é que as teorias que giram em torno da soberania, as dos juristas do rei e as contratualistas, na análise de Foucault, não partem da guerra histórica, da guerra efetiva e sangrenta, mas simplesmente do poder já instituído, do soberano e do seu direito.
Se queremos uma ponte entre esse curso e a Genealogia da moral de Nietzsche, creio que é aqui que temos o ponto mais relevante. Depois de apresentar sua concepção da origem do Estado, que se reporta ao seu texto de juventude, O Estado Grego (terceiro dos Cinco prefácios a cinco livros não escritos), o ato de violência de um raça de guerreiros sobre uma população nômade, Nietzsche (1998, p. 75) diz: “penso haver-se acabado aquele sentimentalismo que fazia o Estado começar com um contrato”. O ponto de convergência entre Nietzsche e Foucault, aqui, é o historicismo implicado no procedimento genealógico de cada um desses autores, tema para uma outra ocasião. Fiquemos apenas com o historicismo, por hora.
Como Nietzsche e ao contrário de Hobbes, Foucault procura fazer o levantamento da história. Não é o nascimento formal do Estado que interessa, mas aquilo que o historicismo político, caracterizado no curso de 1976, procura localizar no início da constituição das monarquias hereditárias, a guerra de ocupação. Mais uma vez, entretanto, não é a guerra o ponto de partida de Foucault, nesse curso, mas a relação histórica, como relação de poder, entre o historicismo político e o contratualismo.
Na interpretação de Foucault, o contratualismo procura suprimir aquilo que o historicismo quer recuperar, a guerra como princípio constitutivo da lei e da dominação de uma raça sobre outra. Essa interpretação do contratualismo fica clara quando Foucault faz uma breve exegese do Leviatã de Hobbes.
Ao leitor do Leviatã que acreditou que a guerra foi posta por Hobbes no fundamento do Estado, Foucault (2000, p. 40-1) diz ele foi apanhado numa armadilha: “é preciso desvencilhar-se do modelo do Leviatã [...] que, historicamente [...] é a grande esparrela em que corremos o risco de cair, quando queremos analisar o poder...”. De fato, a armadilha apanha, pois tudo o que o texto de Hobbes faz pensar é na presença generalizada do conflito. Não apenas em uma guerra que antecede o pacto, mas numa possibilidade permanente de guerra que exige uma continuada adesão ao pacto. Que a guerra seja a condição mesma das relações humanas é o que a leitura de Hobbes nos faz pensar. Para Foucault (2000, p. 102) essa é apenas a primeira leitura, a mais ingênua.
Sabemos que o estado de natureza, o estado que antecede o pacto, concebe-o Hobbes como uma condição de igualdade entre os homens. Se há alguma desigualdade de força física de um em relação a outro, isso sempre pode ser compensado pela astúcia, pela ação conjugada de indivíduos combinados. Dessa forma, não existe aquele que é forte o bastante para nada temer, como não há um fraco que não constitua algum risco e perigo . Nesse estado, então, todos têm de temer permanentemente pela vida.
Na interpretação de Foucault (2000, p. 105), nesse estado de igualdade ou de pequenas diferenças compensáveis, o mais fraco não vai renunciar à guerra porque ela é um meio para conquistar a igualdade. Aquele que é, entretanto, um pouco mais forte do que os outros e sabe que pode acabar mais fraco, não tem interesse na guerra. Para evitá-la, no entanto, o mais forte deve mostrar que está pronto a fazê-la, que dela não desiste. Assim, ele consegue que aquele que está a ponto de atacar tenha dúvidas sobre suas chances. Dessa forma, a guerra de Hobbes, “a mais geral de todas as guerras, aquela que se manifesta em todos os instantes e em todas as dimensões”, essa guerra de todos contra todos, não passa, para Foucault (2000, p. 102.105) de um jogo de representações calculadas (“eu me represento a força do outro, represento-me que o outro se representa minha força”), de manifestações enfáticas (sinalizações de guerra) e de táticas de intimidação entrecruzadas (“receio tanto fazer a guerra que só ficarei tranqüilo se você recear [...] um pouco mais”).

Nesse teatro da permuta das representações, não há guerra efetiva, guerra real, como também não se trata do estado de selvageria bestial. “O que caracteriza o estado de guerra – diz Foucault (2000, p. 106) – é uma espécie de diplomacia infinita de rivalidades igualitárias”. Não é a guerra, mas o “estado de guerra”. Foucault cita o Leviatã: “A guerra não consiste somente na batalha e nos combates efetivos; mas num espaço de tempo – e o estado de guerra – em que a vontade de se enfrentar em batalhas é suficientemente demonstrada”.
A essa altura, uma questão tornou-se ineludível. Se a violência e a soberania não é o ponto de partida da análise de Foucault, mas as relações de poder, como é possível entender que sua análise, aliás como a de Nietzsche, procure fazer aparecer a guerra lá mesmo onde ela mais parecia presente na tradição filosófica e procura fazer ver que esse aparecimento é apenas fictício. Ou seja, sem que a guerra e o poder de matar sejam o foco da análise de Foucault, são eles que ele faz aparecer em a efetividade violenta e sangrenta da história e não como mera suposição ou argumento fictício em uma retórica jurisdicista.
Nesse sentido, é bom lembrar que Vigiar e Punir é uma história do desaparecimento do suplício e do nascimento do regime de ‘educação’ prisional. Entretanto, há página em que a violência da pena de morte apareça com maior sutileza filosófica do que aquela em que se descreve o regime medicalizado de uma morte sem dor?
Toda a linhagem de escritos de Foucault sobre a história da psiquiatria não comporta uma denúncia de uma nova ordem de violência contra o louco, diante do mito de uma psiquiatria moderna que se apresenta como a libertação do louco do regime prisional do grande internamento clássico?
Creio que uma chave para atravessarmos esse paradoxo nos foi dada por Foucault naquela famosa e tensa entrevista televisionada entre ele, F. Elders e N. Chomsky. Questionado sobre o caráter democrático de nossas sociedades contemporâneas, Foucault (1994a, p. 496) diz:
Parece-me que, em uma sociedade como a nossa, a verdadeira tarefa política é a de criticar o jogo das instituições aparentemente neutras e independentes; a de criticá-las e a de atacá-las de tal maneira que a violência política que se exercia obscuramente nelas seja desmascarada e que se possa lutar contra elas.
Isso significa que, embora a violência não seja um conceito da filosofia de Foucault, embora ela não seja o ponto de partida e também não seja o foco central de sua análise, ela é, como conceito negativo, aquilo que sua obra tem como exterioridade e aquilo que sua obra produz de exterior a si mesma, o aparecimento da violência, lá onde ela parecia não existir.
Para usar expressões de Deleuze, nesse ponto o trabalho de Foucault apresenta-se muito mais como uma máquina de guerra filosófica do que uma máquina filosófica de invenção de conceitos. Mesmo que não haja, então, um conceito de violência em Foucault, como proceder para produzir essa crítica intensiva contra a violência?
Ao apartar-se da opção de analisar o poder como violência, ao fazer uma história das relações de poder como ações sobre ações, Foucault liberou-se do procedimento humanista do denuncismo da violência, com suas implicações metafísicas, tal como a defesa do valor da vida humana – a resvalar no transcendentalismo – e outras. A contribuição de Nietzsche aí deve ter sido, muito mais que crítica à moral da compaixão, a filosofia do poder como plural e como relação, em que um pólo pode ser ativo e outro reativo, mas onde não há pólo passivo (Chaves, 1988, p. 65-90).
O procedimento adotado pela pesquisa foi o de centrar a análise na lógica e na racionalidade que programa e orienta o conjunto da conduta humana. Lógica e racionalidade que perpassam as instituições, a conduta dos indivíduos e as relações políticas. Diz Foucault (1994b, p. 803), mais uma vez em uma entrevista,
Ora, a lógica e a racionalidade que ancora uma forma de violência foi procurada por Foucault no conjunto de relações de poder, de ações sobre ações, em cujo enquadramento funcional aparece a violência, como forma limite e extrema. Para exemplificar essa interpretação, podemos tomar a análise do tratamento de Dupré por Leuret, no curso de 1973-1974, no Colégio da França. Esse tratamento é tomado por Foucault como exemplar para caracterizar a história da psiquiatria européia entre 1840 e 1870 porque François Leureut teria produzido o discurso mais explícito quanto aos traços da prática do tratamento moral, que domina a psiquiatria essencialmente asilar desse período.
A violência aparece na relação entre Leuret e Dupré especialmente em duas manobras. Uma primeira foi Leuret ter mandado aos enfermeiros acrescentar grãos de calomel à comida de Dupré, com seu efeito diarréico. A segunda, mais constante e que se estende por todo tratamento, é a ducha fria a que Dupré não só é submetido sob a forma de banhos, dos quais é coagido a esvaziar a banheira, mas que é administrada pela boca para produzir afogamento momentâneo.
Ora, esses expedientes violentos não são o foco central da análise de Foucault. Se eles fossem apagados ou se, por alguma razão, o documento não os tivesse preservado, a história que Foucault escreveu continuaria inteira. Isso porque o que importa em todas as manobras realizadas por Leuret, no tratameno de Dupré, respondem por uma lógica e a uma racionalidade que é o entendimento de que a loucura é um erro e que, por detrás de todo erro, esconde-se o verdadeiro erro, que é o segredo da loucura, crer-se rei (foucault, 2003, p. 29). Toda a lógica asilar e toda a lógica terapêutica será, então, montada para fazer o louco confessar que ele não é o soberano. É daí que vem a importância da separação da família, da constituição de uma hierarquia asilar, na qual o médico está no topo, seguido dos enfermeiros e dos vigilantes, a construção de uma disciplina de trabalho e a imposição de uma vida de austeridade, num limiar ligeiramente abaixo da plena satisfação alimentar. Transformado em homem carente o louco está, de partida, numa condição desequilibrada de poder diante do poder psiquiátrico. As ações terapêuticas são todas aquelas que visam a transformação da conduta do louco, que se pretende soberano sobre o mundo, através de suas representações falsas sobre ele ou de sua explícita enunciação de ser Napoleão, como o faz Dupré. Os confrontos de Leuret e Dupré, também aqueles em que os expedientes violentos são utilizados, visam sempre fazer com que Dupré desenvolva uma conduta normal, ou seja, aquela que reconhece a soberania do médico e a soberania do mundo sobre ele, a necessidade de trabalho para obter dinheiro, a necessidade de dizer a verdade para adequar-se ao mundo das pessoas, a necessidade dos outros para obter o que comer.
Mas esse curso de 1973-1974 rende ainda algo mais sobre o tema da violência. Nele ficamos sabendo de mais uma razão pela qual Foucault a manteve nessa margem exterior da sua filosofia. Ao anunciar as linhas gerais do curso, na primeira aula, ele confessa-se surpreendido pelo fato de que Pinel, Esquirol e outros são contados entre os reformadores humanistas por seus hagiógrafos, a despeito de que seus tratamentos fazem grande apelo à força física. Essa surpresa, entretanto, não conduziu o curso de Foucault para o caminho de uma história em que o humanismo é retificado e purificado de seu deslize historiográfico. Foucault também não cai na armadilha de apartar e opor um poder bom e um poder mau, este último atravessado pela violência, pelo poder físico. A tese que conduzirá o curso, a racionalidade que ele procurará perseguir, dessa vez, nessa sua nova história do poder psiquiátrico, será a de que “todo poder é físico e há entre o corpo e o poder político uma ligação direta” (Foucault, 2003, p. 15).
Então, a noção de violência como coerção física não é instrumento útil porque essa oposição entre uma ação que coage e é violenta e uma ação que não coage e, portanto, não é violenta, não é produtiva quando se trata de procurar uma lógica e uma racionalidade que estrutura ações sobre ações, quando há ou quando não há violência, já que em todas elas está em jogo alguma ação sobre o corpo. O corpo, entretanto, não é o elemento passivo do poder. Ele é o que está numa relação dinâmica, ele é em ação e em reação, em relação a outras ações.
Para concluir, retomemos o curso Em defesa da sociedade. A sua última aula é muito parecida com a última parte de A vontade de saber. Nesses textos, Foucault amplia ou aprofunda o significado de um conceito que inventara em uma palestra aqui no Brasil, o conceito de biopoder e biopolítica. Inicialmente, biopoder foi apresentado como conceito correlato ao nascimento da medicina social. Mas, nos dois textos acima, biopoder é o nome da forma das relações de poder da modernidade, que é também denominada de “nossa modernidade biológica” (Foucault, 1993, p. 134). Biopoder é, agora, explicitado através de uma fórmula muito vasta, ele é o poder de fazer viver e deixar morrer e está em oposição ao poder soberano, expresso pela fórmula invertida como poder de fazer morrer e deixar viver.
Através da tensão entre essas duas fórmulas, entre biopolítica e soberania, Foucault persegue a lógica e a racionalidade da nossa modernidade biológica. Isso permite que, lá onde ninguém suspeita, na medicina social, na administração biopolítica das condutas, a lógica do fazer viver coabite com a lógica do fazer morrer e produza não só a idéia da morte de todas as outras raças como a idéia da morte da própria raça em nome de uma raça biologicamente pura. Tanatopolítica é o reverso de biopolítica (Foucault, 1994d, p. 826). Ambas características da nossa modernidade biológica.
É realmente surpreendente que a filosofia de Foucault e a de Nietzsche de uma forma um pouco mais distante tenha produzido tão prontamente, em 1978, uma pérola da filosofia brasileira que é Danação da Norma, escrita por uma equipe coordenada por Roberto Machado. Uma obra mais conhecida pelos estudantes brasileiros de história do que pelos estudantes brasileiros de filosofia. Uma obra que segue a trilha do que aqui foi apresentado. Sem que a violência seja o mote ou o fio condutor, ela é uma das melhores genealogias da bio-violência brasileira, como pesquisa original coordenada pelo conceito de biopolítica. Vale a pena citá-la porque parece que nela há uma articulação que ainda não encontrei de forma tão bem documentada historicamente nos trabalho de Foucault. Ela mostra como, no Brasil, é a lógica da medicina social que coordena a implantação da psiquiatria moderna. A lógica é separar o louco do social e alocá-lo num espaço social específico, o hospício. É assim que o biopoder pretendeu purificar a sociedade brasileira, nossa edição própria da idéia da purificação da raça.
Ainda uma última referência conclusiva. Num texto dedicado à apresentação geral da filosofia de Canguilhem, Foucault propõe um paradoxo sobre o qual vale a pena pensar porque está em conexão profunda com a opção metodolótica de Foucault aqui descrita. Ele divide a história da filosofia francesa do século XX em duas tradições, ambas inicialmente produzidas por duas leituras diversas das Meditações cartesianas de Husserl. De um lado uma filosofia da experiência do sentido e do sujeito. Desse lado estariam Sartre e Merleau-Ponty. De outro lado, uma filosofia do saber, da racionalidade e do conceito. Desse lado estariam Cavaillès, Bachelard, Koyré e Canguilhem. Creio ser nessa segunda linhagem que Foucault deveria ser inserido. Sobre a obra de Canguilhem, Foucault diz que ela é propositalmente austera, bem delimitada, cuidadosamente voltada a um domínio particular na história das ciências e, assim, ela não se prestou a grandes espetáculos. Sobre esse conjunto da segunda linhagem, Foucault diz que ele restou mais teórico, mais regrado sobrre tarefas especulativas, mais distante também das interrogações políticas imediatas. No entanto, eis o paradoxo, foi ela que, durante a guerra, tomou o partido e de modo muito direto do combate, como se a questão do fundamento da racionalidade não pudesse ser dissociado da interrogação sobre as condições atuais de sua existência. Foi ela também que jogou, no curso dos anos sessenta, um papel decisivo em uma crise que não era simplesmente aquela da Universidade, mas aquela do estatuto e do papel do saber. (Foucault, 1994c, p. 765)
Qual seria a razão desse paradoxo? A resposta de Foucault é que essa linhagem, em sua pergunta pelo fundamento da racionalidade permaneceu profundamente ligada ao presente e, dessa forma, ele liga essa tradição a algo anterior a Husserl. Ela estaria ligada uma interrogação essencial pela racionalidade do presente, pergunta que foi feita pela primeira vez por Kant, em seu pequeno texto Was ist Aufklärung? como resposta a um leitor de Berlinische Monatsschrift. Foucault (1994c, p. 765-6) diz que, com esse texto, o Iluminismo torna-se o momento no qual “a filosofia encontraria a possibilidade de se constituir como a figura determinante de uma época e, no qual, essa época tornar-se-ia a forma do acontecimento (accomplissement) dessa filosofia”.
Ao caracterizar a nossa modernidade como biológica, ao cunhar a tensão entre biopolítica e soberania, entre biopoder e tanatopoder, Foucault, nessa linhagem de filósofos a que ele se refere, nos ofereceu a figura determinante da racionalidade da nossa época. Dessa forma, ele nos ofereceu um instrumento de trabalho filosófico pelo qual, como fez Roberto Machado e sua equipe e, mais recentemente, Vera Portocarrero, no livro Arquivos da loucura, é possível perseguir racionalmente as formas da racionalidade nas quais a violência encontra sua ancoragem mais profunda, ainda que um trabalho de história da ciência, história da racionalidade científica, da biologia, da medicina e da psiquiatria continue a não fazer grande espetáculo como uma confrontação direta e imediata com o tema da violência e outros que possam render mais luzes midiáticas.




1“A multidão que pode ser considerada suficiente para garantir nossa segurança não pode ser defendida por um número exato, mas apenas por comparação com o inimigo que tememos, e é suficiente quando a superioridade do inimigo não é de importância tão visível e manifesta que baste para garantir a vitória, incitando-o a tomar a iniciativa da guerra.” (HOBBES, 1999, p. 142)

2 Hobbes, 1999, p. 107-11. Primeira Parte, Capítulo XIII.

3 Esta é a transcrição da citação de FOUCAULT, 2000, p. 106. Na edição brasileira, a tradução é a seguinte: “Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz.” (Hobbes, 1999, p. 109. Primeira Parte. Capítulo XIII).



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHAVES, Ernani. Foucault e a psicanálise. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1993.
FOUCAULT, Michel. De la nature humaine: justice contre pouvoir. In: Dits et ecrits. Paris: Gallimard, 1994a, p. 471-512. (Vol. II).
FOUCAULT, Michel. Foucault étudie la raisond’État. In: Dits et ecrits. Paris: Gallimard, 1994b, p. 801-5. (Vol. III).
FOUCAULT, Michel. La vie: l’expérience et la science. In: Dits et ecrits. Paris: Gallimard, 1994c, p. 763-76 (Vol. IV).
FOUCAULT, Michel. La tecnologie politique des individus. In: Dits et ecrits. Paris: Gallimard, 1994d, p. 813-28. (Vol. IV).
FOUCAULT, Michel. O sujeito e o poder. In: DREYFUS, Hubert L. e RABINOW, Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995, p. 231-249.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FOUCAULT, Michel. Le pouvoir psychiatrique. Cours au Collège de France. 1973-1974. Paris: Gallimard, Seuil, 2003.
FOUCAULT, Michel. Verdade e poder. In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2004a, p. 1-14, 19a. ed.
HOBBES DE MALMESBURY, T. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo: Nova Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores)
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
STOPPINO, Mario. Violência (verbete). In: BOBBIO, Norberto e outros. Dicionário de política. Brasília: Edunb, 1992, p. 1291-98. (Vol. 2).

A ÉTICA COMO POTÊNCIA E A MORAL COMO SERVIDÃO.

Luiz Fuganti



Ao primeiro sinal da palavra ética o que salta à atenção comum do cidadão é um chamado para que ele, ao ponderar seu sentido mais freqüente e ordinário, procure ascender a uma postura de vida e de comportamento que por princípio o colocaria no caminho do Bem, seja de natureza espiritual, seja um Bem para a humanidade ou, simplesmente, uma disposição por parte daquele que é qualificado com atributos ditos éticos, a assumir um comportamento que tenderia para o tão propalado bem comum da sociedade em que vive.
Bastaria, para isso, apenas seguir o referencial da Lei, com o ideal de igualar-se a sua pura forma e introjetar seu paradigma universal. Mas ao mesmo tempo em que esta concepção do senso comum é compartilhada como sendo a que melhor conduz o indivíduo a um modo de vida responsável e justo, concedendo-lhe o direito a uma espécie de liberdade assistida por fora e vigiada por dentro (como num panópticum), relativa ao grau de liberdade que a própria sociedade poderia suportar sem ser ameaçada em sua constituição, instaura-se, na mesma proporção, a contraparte de um assujeitamento sutil e inaudito que submete e desvia tanto o desejo quanto mais ele adere, na espera de recompensas ou ganhos, ao modo moralmente útil de ser.
O modo que agrega o indivíduo ao corpo da sociedade, através de uma relação dicotômica de boa ou má vontade para com o corpo de leis, o qual devolve ao indivíduo o troco em forma de recompensas ou castigos, remonta já ao nascimento do Estado. Mas não é apenas o Estado arcaico que cultiva este tipo de código. Pertence à própria natureza do Estado este modo de codificar seus membros pela relação de obediência e transgressão. É por isso que o Estado é um grande estimulador e reprodutor das paixões tristes, como diz Espinosa. É por medo dos castigos e esperança das recompensas que o indivíduo submete-se a um poder que o separa da sua própria capacidade de agir e pensar livremente, desejando sua própria servidão. Ainda que aquele modo se alimente - por pura crença - de investimentos subjetivos de um indivíduo habituado ao esforço cotidiano de sobrevivência, dissimulando concórdias e inviabilizando relações reais de solidariedade ou - por pura conveniência utilitária e objetiva - de investimentos de desejo (de poder) nem um pouco desinteressados (ao contrário do que invoca o sujeito legislador de Kant), desvela-se assim como seu contraponto um comportamento de um tipo de vida inteiramente subserviente, tragado por um círculo vicioso, como num buraco negro, sempre realimentado pela repetição da perda da capacidade de criar as próprias condições existenciais de efetuação de suas potências. É assim que tombamos. Por morder a isca dos "nossos" interesses, interesses de um "Eu", caímos cativos de uma moral que impõe dever a uma instância exterior como o Estado, o Bem, a Lei ou, em uma palavra, a valores de uma época que, apesar de serem criados por uma determinada sociedade historicamente formada, são publicados e estabelecidos como universais e perenes, enfim, transcendentes ao tempo e ao espaço nos quais emergiram.
Expressos por discursos que pretendem representar e justificar os chamados "bons costumes", auto-qualificados de científicos, cultuados como verdades em si ou formas puras do saber, esses valores bloqueiam e separam o indivíduo de sua capacidade imanente de pensar e agir por ordem própria, desqualificando seus saberes locais e singulares como meras crenças ou opiniões e destituindo-os de suas potências autônomas que criam seus próprios modos de efetuação. É dessa maneira que indivíduos tornados fracos, por paixões de medo e esperança passam a clamar por uma ordem heterônoma que os salvaria do caos, da impotência e da miséria, tal como no exemplo extremo do nazismo. Como diz Wilhelm Reich, os alemães não foram simplesmente enganados, eles desejaram o nazismo.
É de tais valores, aos quais uma suposta vontade humana deveria se curvar, que curiosamente se extrai uma significação intrínseca, a substância real, ao mesmo tempo forma em si e oriente para o Homem, para falar hegelianamente. Desenhando um plano de tal ordem transcendente à natureza material tida como caótica, o investimento em tais valores atribui à Lei a irônica tarefa e o crédito infinito de piedosamente salvar o Homem, já que, sobrevoando a natureza, estaria imune também às tendências perversas de uma natureza humana decaída, sempre em falta com o bem e a verdade, demasiado atolada nas paixões do corpo e da alma. É, portanto, nesse modo de instituir valores e vínculos que fundam-se dívidas infinitas e impagáveis, onde não sobra outra alternativa aos "cidadãos" senão rolar indefinidamente o principal da dívida e pagar interminavelmente seus juros. Eis como uma dívida de poder, por natureza impagável, se torna dívida de existência. Por esses bizarros caminhos é que se chega a desejar a própria sujeição como se da liberdade se tratasse. Quando queremos formar nossos cidadãos, investimos em assujeitamentos. Eis todo o cinismo da idéia moderna de liberdade.
Mas é a partir de modos de relações microfísicas de poder, imanentes ao próprio tipo de formação social, que se mostra realmente como se instaura e triunfa esse nihilismo, essa negação das qualidades nômades da vida, tornando as sociedades puramente reativas e conservadoras de uma maneira baixa de existir. Assim, a constituição da crença em formas metafísicas fechadas em si - que na verdade são geradas e cultivadas de dentro pelo próprio tipo de formação e desenvolvimento sociais - consolidaria um plano puramente transcendental, a partir do qual tudo o que acontece em sociedade poderia ser julgado, resgatado ou condenado. É sobre esse plano que geralmente a consciência ingênua é, simultaneamente, determinada e tornada cúmplice, pois corrobora verdades que toma como justas e neutras, eternas e externas, isto é, dotadas de uma transcendência que justificaria lógica e moralmente sua racionalidade legisladora. Numa espécie de coação de interesse mútuo, determinam-se as justas formas e prescrevem-se limites normativos como modelos autenticadores de idéias justas e de discursos unificadores, de atos equilibrados e de comportamentos responsáveis. No entanto, talvez a transposição mais sintomática deste processo moralizante apareça no ideal de unificação aspirado pelo poder, que se destaca e controla uma sociedade civil submetida aos seus interesses. Conseqüentemente, o poder produzirá o simulacro de uma conciliação, de um achatamento ou dissolução das diferenças.
Naturalmente, do ponto de vista político, a encarnação máxima da unificação se efetuaria na figura do Estado Nacional, sendo secundário o aspecto ideológico de sua bandeira, isto é, de quem o controla, operando invariavelmente a serviço do interesse privado ou parcial e em nome de um simulacro de conceito universal de coisa pública, sempre destacada da sociedade. O mais importante seria superar o estado de natureza, o qual, na visão de Hobbes, tende à discórdia, à dissolução e à guerra, para substituí-lo, na prática, por forças capazes de dominar, controlar e estancar a ferida das disputas individuais. É assim, por exemplo, que Hobbes concebe a ficção da unidade e da paz civil a partir de uma superação do estado de direito natural do homem, que alimentaria, na diversidade, a guerra de todos contra todos, para um estado de direito civil, onde o indivíduo delega parte de seus direitos naturais e recebe, em contrapartida, direitos de civilidade que lhe garantem a segurança, o desenvolvimento e a paz. Nesse sentido, o indivíduo submeter-se-ia a uma rede de direitos e deveres co-extensivos a esta instância unificadora da sociedade, antes dividida e agora pacificada, a que se denomina Estado.
Para nós, toda essa visão da Lei, do Bem comum e da Obediência a um plano de organização de direitos e deveres que normatizariam as condutas e levariam a uma pretensa ordem universal, numa palavra, tudo o que constitui a atitude Moral propriamente dita na relação do indivíduo com a sociedade, precisa ser claramente distinguida de uma outra atitude, a postura a que chamamos Ética.
Contrariamente ao modo ascético e moral de ser, o modo de vida ético instiga, não a obediência a um conjunto de regras e valores prescritos pelo poder alheio, interiorizando formas e incorporando atitudes vindas de fora para podermos comungar das benesses do poder ou de vantagens que são, no final das contas, aguilhões. Não o modo de ser dos bons sujeitos legisladores guardiões do Juízo e da Lei abstrata, do Bem ou dos valores transcendente à vida cotidiana.
É a partir de outro lugar que não o da dominação e da sujeição, é a partir de um topos ocupado pela potência de afirmar as próprias diferenças constituintes dos seres ou ponto de vista da vida em processo de diferenciação, que o modo de vida ético se instala. O modelo da ética não é o do livre arbítrio para o Bem a partir da livre recusa do Mal. Bem e Mal são ficções fundadas numa mesma ilusão de consciência. E essa suposta liberdade nada mais é do que a ignorância das causas que determinam tal escolha ou recusa. A originalidade de Espinosa não consistiu em afirmar que o Mal, enquanto substância, não tinha realidade, mas justamente aquilo que o Ocidente mais cultuou: o próprio Bem, como substância do ser, também perdeu toda realidade. Mas, como diria Nietzsche, para além do Bem e do Mal não significa para além do bom e mau. Estes adjetivos qualificam agora não apenas atitudes e conseqüências, mas também e sobretudo tipos ou modos de vida, maneiras de existir. Mau é tudo aquilo que se serve das paixões tristes, da tristeza mesma para firmar e conservar seu poder ou separar as potências da vida de suas condições de afirmação, isto é, do que podem. Assim são maus, para Espinosa, não apenas o tirano que só consegue reinar sobre a impotência alheia, mas também o próprio escravo que alimenta a necessidade do tirano como seu provedor, bem como um terceiro tipo que vive da miséria dos dois e extrai dela um poder espiritual: o sacerdote. Eis a trindade do tirano, do escravo e do sacerdote, as três cabeças do ressentimento que estariam na base de todo poder. Sobre essa tríade, Epicuro, Lucrécio, Espinosa e Nietzsche dizem praticamente a mesma coisa. Denunciam tudo o que precisa da tristeza, da impotência e da miséria alheias para triunfar.
A ética, ao contrário, se funda num modo de viver sinalizado pela alegria. O problema ético parte da compreensão de que, como diria Espinosa, tudo na natureza participa de uma ordem comum de encontros. Bons e maus encontros, eis o objeto da problematização ética. Tudo se compõe e decompõe na natureza do ponto de vista das partes que a constituem. Assim, para explicar a natureza do mau, Espinosa lança mão de um modelo não moral, mas alimentar ou natural. O mau é sempre um mau encontro que, como a ingestão de um veneno, decompõe parcial ou totalmente os elementos que estão sob a relação característica que constitui o nosso ser existente e diminui ou destrói nossa potência de existir, agir e pensar, nos entristecendo ou matando. O bom seria como um alimento que se compõe com o nosso corpo constituindo um bom encontro, na medida que aumenta nossa potência de existir, de agir e pensar, produzindo conseqüentemente afetos de alegria.
Mas, como um alimento ou um veneno, nem tudo que é mau num momento, para um indivíduo, num determinado lugar, o é necessariamente se um dos elementos no encontro variar, como o lugar, o tempo, o indivíduo, corpo ou idéia. Desse modo, o que me envenena num tempo ou lugar, pode me alimentar noutro tempo ou lugar, bem como o que é alimento para um pode ser veneno para outro. O mau não é proibição, a não ser para o homem prisioneiro da consciência e da imaginação. O mau significa sempre um mau encontro que decompõe minha natureza por ignorar ou não partilhar suas leis; não leis humanas ou divinas promulgadas por um Senhor como palavras de ordem ou sentenças, mas leis da natureza que simplesmente nos fazem compreender o modo como a própria natureza funciona por si, a partir de si e para si e que nos afetam também na medida em que somos parte da própria natureza e agimos e pensamos por estas mesmas regras.
É, portanto, a partir de uma atitude bem diversa que se promove uma Maneira de Viver conforme critérios de conduta imanentes ao próprio ser do desejo, ser da vida, ser da sociedade, ser da natureza (tudo isso é uma e a mesma coisa no ser, não obstante sua distinção modal ou diferença de regime). Um conjunto de diferenças singulares livres não se deixa reduzir ou atrelar em relações contratuais, legais ou institucionais, as quais buscariam simplesmente silenciar os conflitos sociais ou deles extrair mais valia. Por não comportar mais a idéia de um indivíduo atomizado - cindido entre a impotência de afirmar e a obediência redentora - ou do eu pessoal - prisioneiro de atributos constituintes do sujeito como instância moral ou racional - o conceito de uma cidadania liberadora é pensado a partir de uma multiplicidade de singularidades como potências autônomas ou com tendência à autonomia. O campo social passa a ser compreendido ou constituído por um conjunto de forças em relação e não mais como um agregado de formas atomizadas, fechadas em limites morais e capturadas por valores utilitários ou finalistas. A vontade social torna-se propriamente plural, um autêntico campo de multiplicidades virtuais ou potências de atualização (com repulsa a unificações e fechamentos totalitários), torna-se verdadeiramente autônoma e aberta.
Como, enquanto cidadão, tornar-se uma potência pluralista, um agenciador de relações civis intensas e realmente solidárias?
Tudo aquilo que por si só ou apenas a partir de si - de modo imanente - cria e condiciona modos de composição entre indivíduos e elementos que lhe atravessam, usando como critério seletivo do que se passa em sociedade a capacidade de afirmação e diferenciação, incorporada em cada acontecimento, constitui um filtro ou um plano de composição gerador de realidades livres, constitui um campo de atração e consistência como potência autônoma.
No mais profundo do nosso ser e na mais superficial das nossas superfícies de ser, somos não uma unidade ou identidade formal como um eu, mas multiplicidades singulares sem sujeito. No entanto, quanta potência, quanta diferenciação, quanta generosidade nesses modos próprios e singulares de ser! Os laços que estabelecemos conosco, com outrem, com as multiplicidades sociais que se atualizam e nos afetam, enfim com a natureza, são catalizadores de acontecimentos, são condições de encontros e de transmissões de realidades, são o arco para flechas que trazem o futuro, mas que redimem o passado e fazem do presente um verdadeiro campo de experimentação e de produção inocente de realidade.
Somos potências individuantes que selecionam e extraem destes encontros ou relações o que realmente comunga na pura afirmação de tudo o que difere, criando singularidades intensificadoras da vida, como se atingíssemos um duplo do real em cada acontecimento, um real virtual que inflama a existência atual e acelera os processos que precipitam a geração do novo. Somos irredutíveis a formas médias de igualização. Participamos na afirmação, portanto, de diferenças criadoras que propiciam a expansão da vida em sociedade, superando limites que buscamos ultrapassar.
Chamamos ética não a um dever para com a Lei ou o Bem, nem tampouco a um poder de segregar ou distinguir o puro do impuro, o joio do trigo, o Bem do Mal, mas a uma capacidade da vida e do pensamento que nos atravessa em selecionar, nos encontros que produzimos, algo que nos faça ultrapassar as próprias condições da experiência condicionada pelo social ou pelo poder, na direção de uma experiência liberadora, como num aprendizado contínuo. Fazendo coexistir as diferenças, conectando-as ao acaso dos espaços e dos tempos que as misturam e tornam seus encontros, ao mesmo tempo, contingentes e necessários num plano comum de natureza adjacente ao campo social, (pois a vida não existe fora dos encontros e dos acontecimentos que lhe advém), afirmamos o que há de fatal nestes encontros, algo como o sentido superior de tudo o que é. Pois é querendo o acontecimento no próprio acontecimento, que liberamos algo que se distingue dos simples fatos cotidianos.
A apropriação e criação de regras e códigos que comandam a interpretação dos acontecimentos pelos intérpretes do poder, seja do ponto de vista político, econômico ou midiático, impõem o que se deve pensar, como se deve agir e em que ou quem acreditar, sob a guilhotina dos prêmios ou dos castigos por Bem ou por Mal, pelo útil ou nocivo, pelo legal ou ilegal, sempre conforme ao sentido dominante dado pelo poder em questão. A invenção dos fatos - ou do que deve ser destacado como histórico ou possuindo sentido relevante, como o que faz a notícia - é sempre dada no modo como o poder se apodera dos acontecimentos e lhes confere significado, na maneira como essa verdade é produzida pelo poder, a verdade do poder.
Encontramos algo diferencial dos fatos nos acontecimentos de uma sociedade e naquilo mesmo que nos acontece, pela simples razão de vivermos em sociedade, sendo capazes de experimentar por nós mesmos e apreender aquilo que constitui os acontecimentos, do mesmo modo que constituímos os acontecimentos. Tornamo-nos acontecimentos! Encontramos algo que duplica nossa experiência sensível e casual em vivência necessária e experiência do pensamento, isto é, algo como sentido ativo que nos leva a contrair e antecipar o futuro, ganhando velocidade e liberdade. Assim se constitui uma cultura nômade e uma memória virtual do futuro que nos distancia do presente cristalizado e faz fugir todo poder paralisador da vida. Através do sentido vivo em devir que não se deixa fixar ou capturar quando é rebatido sobre o plano dos fatos ou das significações dominantes do poder constituído.
Deste ponto de vista, como poder-se-ia formar autênticos agentes sociais, isto é, verdadeiros modificadores ou criadores de novas condições sociais de existência? Como formar cidadãos livres no pleno sentido da palavra?
Como diria Nietzsche, sem o Não destruidor do leão, não geramos a condição para o grande Sim criador da criança instaurar uma roda que gira por si mesma, um novo começo, uma nova inocência. Por isso a necessidade da crítica. É preciso começar por denunciar as armadilhas que nos reservam os valores estabelecidos pelos poderes que se descolam e se voltam contra o campo social. Os Estados enquanto máquinas de submeter o conjunto das relações sociais, correspondem a investimentos que a própria sociedade faz para se manter coesa e que acabam voltando-se contra ela mesma.
Somos capazes de inventar outros modos de relações sociais ou estamos fadados ao tédio e à repetição do enfadonho? Para responder esta questão, precisamos antes problematizar a natureza das relações que constituem o tecido atual das nossas sociedades e o modo como são reproduzidas. Somos prisioneiros de um "pré-conceito" ou de uma imagem que subjaz nas mais recônditas camadas da nossa história e do inconsciente coletivo e que coexiste no modo atual de transmitir conteúdos materiais, energéticos ou espirituais. Somos prisioneiros do mito que reza que toda relação social pressupõe uma troca concretizada por meio de um equivalente, isto é, por meio de um valor abstrato capaz de axiomatizar ou igualizar qualquer relação, destituindo-a de toda e qualquer singularidade que possa diferenciá-la e afirmá-la como um valor autônomo insubstituível. Assim, não só os produtos materiais transformaram-se em mercadorias. São todos os processos espirituais de singularizações e subjetivações humanas que caem na axiomática delirante do campo econômico - já que a axiomatização primeira é a do tempo - e que as reduzem todas a elementos com unidades mínimas equivalentes e permutáveis entre si. Não é o Dinheiro que constitui a forma privilegiada da mercadoria no capitalismo. É o modo de produção de subjetividade ou dos processos de subjetivação que constitui a condição fundamental geradora de todos os estofos ou substratos para a existência e a reprodução bem sucedida do próprio Capital.
A subjetividade é a mercadoria por excelência em nossas sociedades. Ela é a criação e a reprodução, pelo poder, de um território que não pára de faltar a si mesmo, alimentando assim a infindável insuficiência de ser: sempre preenchida pelo "poder" de compra, sempre frustrada pela ilusão insuperável do consumo ideal que escapa no instante mesmo em que o atingimos; sempre reproduzida em sua falta territorial, abismal carência, impotência real de conquista da moeda que tudo pode mas que sempre cava mais fundo, pela sua dupla face esquizofrênica, o buraco da dívida existencial. Fenda intransponível.
Estamos em novos ambientes. O capitalismo fabricou para si atmosferas ainda mais complexas. Como diria Deleuze, não mais a toupeira disciplinar, mas a serpente fluida do controle. A subjetividade já não é produzida simplesmente pelas velhas máquinas disciplinares. As máquinas a vapor e de carbono deram lugar às máquinas de silício, de terceira geração. O modus operandi do poder disciplinar, fechado e segmentarizado no tempo e no espaço, como descreveu Foucault, cedeu lugar para as cifras magnéticas que conectam ou desencaixam fluxos de energia em espaço aberto e controle ininterrupto.
Tanto o poder quanto a produção do seu estofo, a subjetividade, se realizam atualmente por modulação de fluxos sob controle aberto, infinitamente permutáveis e em comunicação permanente, como modo de produção de canais e mais valia de canais, de fluxos e mais valia maquínica, de idéias e mais valia de saber e poder. Controle num espaço tornado aberto simultaneamente no interior e no exterior e em velocidade absoluta no tempo que nos constitui como cifras simultaneamente comunicantes.
Não obstante, do mesmo modo que o poder tornou-se mais sutil com suas novas máquinas e formas de exercício, a vida, os devires ativos da vida também encontram ocasiões inéditas, inauditas e poderosas para reagir, criar, fazer passar o inesperado, o ar puro de novos devires e a potências de novas composições no seio mesmo de suas máquinas cibernéticas de controle.
A vida em última instância não se deixa trocar nem avaliar a partir de uma axiomatização abstrata das transmissões de energia. Pois é ela quem avalia e faz passar no modo da intensidade excedentes não mensuráveis, excessos pelos quais se torna possível a constituição de novos tipos de relações. Pois, na verdade, a natureza ou a própria vida, que é um modo de produção da natureza, é quem produz realidade e portanto, por esta capacidade de gerar o excesso, torna ao mesmo tempo possível e necessário novos modos de se relacionar em sociedade. Essas novas maneiras de ser ou modos de relação se caracterizam pela capacidade de fazer passar o excedente não codificável, as intensidades não mensuráveis, as quantidades de energia não axiomatizáveis.
Podemos fazer de nós mesmos um elemento sempre diferencial e diferenciante, gerador de novos devires, um agente imperceptível porque excêntrico e em mutação constante, senhor das modificações que fazem das relações verdadeiras alianças propulsoras de uma vida social em plena expansão. Só pelo excesso nos tornamos aptos a dar e ser generosos. E só nestas condições poderemos formar cidadãos aptos a construir um campo de consistência e composição de tecidos sociais libertários. Homens realmente livres - com força suficiente para resistir e conjurar as ingerências de poderes alienígenas ao campo de imanência de uma sociedade civil - livres de um modelo de acumulação e consumo de energia mortificada e de produção de relações de troca ou de transmissão abstratas, que separam os homens de suas próprias capacidades de agir e de pensar.
Livres por estarem ligados a sua própria potência de produzir e afirmar seus devires criadores. É a partir do modo como se produz e transmite energia, que não mais parasita, mas que estabelece autênticas simbioses, que as condições de existência da vida poderão encontrar seu meio de expansão e expressão da alegria, efeitos do aumento da capacidade de agir e pensar da Terra, na Terra, pela Terra.

A CONSCIÊNCIA INFELIZ E SEUS DESTINOS

O título desta Comunicação se inspira no de Hegel (1798-1800), O cristianismo e seu destino (Der Geist des Christentums und sein Schicksal) e de Freud (1915), As pulsões e seus destinos (Triebe und Triebschickasale). Mais do que um simples pretexto lingüístico para aproximar os dois pensadores, penso que suas análises da infelicidade da consciência (unglückliche Bewusstein) e do mal-estar (Unbehagen) na cultura, a despeito de divergências fundamentais, nos podem auxiliar na compreensão dos destinos dessa infelicidade e desse mal-estar na nossa cultura contemporânea.
Parte-se da suposição de que cada época histórica apresenta suas manifestações peculiares de um sofrimento, de uma infelicidade, de um mal-estar, de um ‘negativo’ que atravessaria a todos os membros de uma determinada comunidade cultural, a despeito de suas subjetividades singulares. Se isso for verdade, devemos inicialmente identificar os tipos de sofrimento e as respectivas culturas com ele correlacionado de que nos falam Hegel e Freud para em seguida pensarmos as eventuais novas formas de sofrimento presentes em nossa cultura

I. A consciência infeliz em Hegel.

1. Algumas interpretações.

Para quem tem um mínimo de cultura filosófica, falar de infelicidade e mal-estar é relembrar imediatamente a poderosa descrição que Hegel faz da consciência infeliz em A Fenomenologia do Espírito. Uma primeira dificuldade a ser contornada, porém, é responder previamente se a infelicidade da consciência hegeliana é algo que remete a uma realidade psicológica e cultural ou se ela se inscreve apenas na ordem de uma contradição lógica a ser superada.
A resposta a essa questão depende da chave de leitura que for privilegiada. Se a Fenomenologia pode ser percebida consensualmente como uma epopéia da liberdade, permanece a dúvida sobre quem é o herói dessa epopéia: a consciência, o Espírito, o Saber Absoluto?
A despeito das diferentes respostas possíveis, é inquestionável que a consciência é a grande protagonista da aventura e da façanha de arrancar-se do mundo natural e se dar uma história: Segundo a bonita descrição de Labarrière ( 1993, p.22),

 
, “ela sai de si, retorna a si, se precipita, é travada, some, emerge, luta, se exprime, progride, afirma, nega, sofre, morre, crê, sabe, ignora, se divide, se reconhece, nos arrasta numa sarabanda desenfreada, freqüentemente inquieta e de repente apaziguada, se erguendo contra a evidência e cedendo à força das coisas, conhecendo a boa e a má fé, a prisão e o despertar da liberdade, se elevando enfim à sua verdadeira estatura, à atitude forte e modesta deste “saber absoluto” que conhece conceitualmente o mundo sem nada acrescentar-lhe e estabelece uma exigente identidade entre o que é dado e o que é compreendido”


Já para Hyppolite (1946, p.184), mais do que a simples consciência, é a consciência infeliz o tema fundamental da Fenomenologia. Não permanece circunscrita a uma das estações que a consciência natural terá necessariamente de atravessar rumo ao saber verdadeiro sobre si mesma. É algo que perpassa todas as páginas do texto, na medida em que a infelicidade é inerente ao devir da consciência. O homem, de fato, não é percebido como essência estática, mas como itinerário e experiência, como ‘negatividade criadora’ que ultrapassa as leis biológicas da natureza e se torna espírito, um “Eu que é Nós, Nós que é Eu”, em outras palavras, se dá uma história ou, servindo-nos de uma seqüências de lindas metáforas utilizadas por Hegel (1992, p. 125-126), “afasta-se da aparência colorida do aquém sensível e da noite vazia do além supra-sensível para entrar no dia espiritual da presença.”

Ambos os celebrados comentaristas e intérpretes da obra de Hegel concordam que, nas palavras de Labarrière (1993, n. 1, p.237), “a ‘infelicidade’ da consciência não conota qualquer estado psicológico, nem mesmo uma sua depreciação; este termo figurativo tem uma alçada lógica na medida em que caracteriza a consciência na sua dualidade constitutiva, cuja unidade é a razão.” Assim também pensa Hyppolite (1946, p.39), segundo o qual inexiste, na Fenomenologia uma menção explícita a uma determinada época histórica à qual vincular a consciência infeliz. Há apenas uma alusão histórica que se presta para ilustrar o desenvolvimento lógico e necessário da ‘consciência de si’.
Já para Jean Wahl (1951, p.VI), um dos iniciadores da renovação dos estudos hegelianos na França, ao perguntar-se logo na prefácio de seu livro A consciência infeliz na filosofia de Hegel, publicado em 1929, que significava a expressão consciência infeliz, respondia que a consciência contraditória estudada por Hegel na Fenomenologia é, antes de tudo, algo que é ‘essencial à alma de Hegel’. É também uma ‘experiência histórica da humanidade’. Enfim e por último, é a expressão de um desequilíbrio profundo, mesmo que momentâneo, não somente do filósofo e da humanidade, mas do próprio universo, que disso toma consciência através deles. Algo de trágico, portanto, de romântico e de religioso perpassa essas páginas da consciência infeliz: “a separação é dor; a contradição é o mal; os elementos opostos são elementos não satisfeitos”. (Ibidem, p.VI).
Dessas interpretações da consciência infeliz nos interessa especialmente aquela que focaliza a infelicidade como expressão privilegiada de uma determinada época histórica. Dessa maneira, talvez seja possível lançar uma ponte com suas outras manifestações culturais de sofrimento e, de modo particular, com nosso mal-estar contemporâneo. Essa interpretação, sem ser exclusiva, é legítima na medida em que a Fenomenologia do Espírito pode ser lida e entendida na sua relação com os escritos anteriores e não apenas com as obras mais logicizantes do Sistema.

2. A consciência infeliz nos escritos do jovem Hegel

O tema da consciência infeliz já se anuncia nos primeiros trabalhos teológicos de Hegel, onde contrapõe à felicidade do povo grego e à figura de Sócrates, respectivamente, a infelicidade do povo judaico e a figura de Cristo. Será, porém, nos escritos do período de Berna onde se encontra o primeiro esboço da consciência infeliz. Ao descrever a passagem do mundo antigo para o mundo moderno, Hegel descreve o homem grego, cuja essência se encontrava na cidade e nos deuses da cidade; a ruptura com a emergência da subjetividade e a decorrente a infelicidade; o advento do cristianismo como religião que correspondia e explicava esse estado de espírito; a superação do Deus Pai, distante e juiz, pela figura de Cristo, o universal concreto, e desse para o Espírito, quando finalmente e realmente se dará a verdadeira reconciliação do infinito com o finito.
Na Fenomenologia, esta abordagem teológica da infelicidade da consciência é transposta filosoficamente sem perda de sua relevância e centralidade. Pode-se até afirmar que perpassa todas as páginas do texto, na medida em que a infelicidade lhe é inerente e decorrente do seu desenvolvimento. De fato, o tornar-se consciente de si mesmo, tornar-se sujeito, implica experimentar o sofrimento de uma unidade perdida. A infelicidade é o preço que a consciência paga por romper com a vida e pela impossibilidade de fazer coincidir plenamente pela reflexão o mundo orgânico da vida biológica e mundo inorgânico da consciência.
O lugar, porém, onde Hegel analisa mais tematicamente o drama da consciência que luta pela reunificação interior de si mesma é nas páginas da Fenomenologia dedicadas à ‘figura’ da consciência infeliz,

 
3. A ‘figura’ da consciência infeliz na Fenomenologia:

Ela é a última ‘estação’ da ‘consciência de si’ rumo à verdade de sua certeza. Consciência desejante, inicialmente, servil-trabalhadora em seguida, pensante no estoicismo, contraditória no ceticismo, passa por último pela experiência da consciência infeliz.
A infelicidade surge precisamente no momento em que a consciência, contraditória ‘em si’, se torna contraditória também ‘para si’. A infelicidade não decorre apenas dessa tomada de consciência, mas também das dificuldades e fracassos que esperam esta terceira forma da liberdade na sua tentativa de suprassumir as primeiras duas, isso é, o “puro pensar do estoicismo, que faz abstração da singularidade em geral; seja do puro pensar de cepticismo, que é somente inquieto, e de fato é apenas a singularidade, como contradição sem-consciência e movimento sem-descanso” (HEGEL, 1992, p.144).
Para dar um repouso à infinita inquietação da consciência cética, a consciência infeliz colocará inicialmente sua saída no ser Imutável ao qual nada faltaria, sendo ao mesmo tempo ‘em si’ e ‘para si’. Nesse primeiro momento, a consciência revive na intimidade de sua consciência a divisão sofrida e desigual que caracterizou a relação Senhor-Escravo. Somente que agora o Senhor é Deus e o Escravo é o Homem, passando a consciência a identificar-se ora com um, ora com outro, sem poder alcançar o repouso na unidade. Na realidade, ela é já essa unidade, mas não tem consciência disso e opõe Deus (o Imutável, o Universal) e o Homem (o Mutável e o Singular). Ao se identificar com a mutabilidade e a inessencialidade, a consciência está condenada à infelicidade. Sua essência verdadeira foi colocada num Deus transcendente e inacessível. Qualquer tentativa de ascese para se libertar da multiplicidade e inessencialidade das coisas está destinada ao fracasso.
A consciência infeliz, portanto, é ao mesmo tempo essencial e inessencial, o que implica que o mutável não pode abstrair do imutável, ma que também esse não está fora da atenção da mutabilidade, o que abre caminho para a segunda fase do imutável como figurado.
Quando o Imutável se torna Imutável figurado, a consciência passa a procurá-lo na sua figura singular, isso é na figura do Cristo histórico, o universal concreto. Pela encarnação, a união da verdade (Universalidade) e da vida (Singularidade) finalmente se realiza, mas de uma maneira imediata, sem passar pelas mediações necessárias. A consciência cristã se descobre infeliz quanto a judaica, porque o Deus encarnado, que perdeu a vida, está distante no tempo e no espaço tão ou mais distante do que o Deus transcendente que nunca a conheceu. As cruzadas são o símbolo histórico desta busca do Absoluto no aquém e que termina no fracasso de um sepulcro vazio.
A reconciliação singularidade-universalidade, mutabilidade-imutabilidade, finito-infinito, se revelou impossível por esses dois caminhos. Faltava a mediação para que a verdade do homem-Deus se tornasse a verdade para-si da consciência. A reconciliação efetiva é possível e a consciência poderá reconhecer-se como um universal concreto graça à figura do Ministro mediador, termo médio do silogismo dialético, cujos termos extremos são a consciência singular e a consciência universal.
Antes, porém, esta consciência singular será consciência devota, desejante, ativa, gozante, agradecida para finalmente se tornar consciência ascética. Nesta última etapa a consciência singular renuncia à sua vontade (obediência), à posse (pobreza) e ao gozo (castidade), à liberdade exterior e interior, numa palavra, ao próprio eu, à própria subjetividade, até tornar-se um objeto. Não percebe, porém, que com isso a sua singularidade se tornou universal, a totalidade do real. A consciência de si sai objetivamente - mas não subjetivamente - de sua infelicidade e se torna Razão. Exemplo histórico desse momento é a superação da comunidade espiritual da Igreja na Idade Média com a emergência da Modernidade.
Em Hegel, portanto, o tema da infelicidade se articula em torno de figuras religiosas transpostas numa linguagem filosófica: o Imutável, o Imutável figurado, o Ministro mediador, o Espírito. A infelicidade não é propriamente um sintoma cultural, mesmo que seja possível encontrar expressões históricas de suas vicissitudes. Trata-se do sintoma de um dilaceramento interno à própria consciência, cindida, dividida, duplicada entre um ‘em-si’ e um ‘para-si’, entre sua singularidade e sua universalidade, entre o mundo do ser e da vida de um lado e o mundo da consciência do outro, entre a substância e o sujeito. Em outras palavras, a consciência infeliz é uma subjetividade em busca de sua unidade (HYPPOLITE, 1946, p.189). Unidade que não é apenas uma tênue esperança, mas uma certeza, mesmo que inicialmente o avanço da consciência cindida rumo a sua superação é só para nós filósofos que rememoramos, mas não para ela, (HEGEL, 1992, p.141; 142; 146; 151). É inegável, porém, que, ao descrever a fenomenologia da consciência infeliz, Hegel mostra que a reconciliação que se encontra no final do processo no “conceito do espírito que se tornou [um ser] vivo e entrou na [esfera da] existência” (HEGEL, 1992, p.140), já se encontrava de alguma maneira desde o começo. (Ibidem, p.140-141.
Com uma certa liberdade e com outro jogo de linguagem poderíamos afirmar que o homem medieval não se pertencia totalmente, na medida em que sua crença nas próprias potencialidades era neutralizada pela dependência e submissão a um Deus onipotente e pela necessária mediação eclesial. Com o desmoronamento da Idade Média, a Reforma e a posterior proclamação da ‘morte de Deus’, teria a Modernidade se livrado da consciência infeliz?

 
II. O mal-estar da Modernidade

Quem nos pode ajudar a responder a essa pergunta é outro pensador – Freud - que não vem da filosofia, mas que também se colocou o problema da ‘infelicidade’, do mal-estar na cultura, quase cem anos depois da morte de Hegel.
O ‘grande Outro’ da religião, Deus, se tornou o da Cultura ao qual os indivíduos estão de tal modo ‘assujeitados’ a ponto de comprometer sua saúde física e psíquica. O olho de Deus se secularizou, assumindo o nome de superego individual e cultural. O preço que pagamos pelo ‘avanço’ civilizatório responde pelo nome de neurose e sentimento inconsciente de culpa.
Essas são as duas teses básicas defendidas por Freud no famoso texto de 1930 O mal-estar na civilização. O mal estar decorre das proibições da cultura ao incesto, à sexualidade polimorfa e perversa e das restrições excessivas à própria sexualidade genital, de fato mais tolerada do que permitida (FREUD, 1930, p.161-162); e da necessidade da cultura, para que se torne possível e se desenvolva (ibidem, p. 185), de redirecionar contra o próprio indivíduo sua agressividade a qual será paga com um sentimento de culpa inconsciente.
Para descrever a relação conflitiva entre o singular (indivíduo) e o universal (cultura), Freud não recorre a figuras religiosas ou filosóficas, como Hegel, mas míticas: Eros e, Thanatos. O mal-estar é um sintoma cultural que remete à dificuldade de reconciliação da sexualidade e agressividade humana com as exigências da cultura. O ‘deus de prótese’ (FREUD, 1930, p.111) que o homem moderno se tornou graça ao avanço técnico-científico, é um deus infeliz. A felicidade não está inscrita nos planos da criação e o destino do homem está mais próximo da infelicidade, cujas causas devem ser procuradas num mundo sem Providência, numa cultura sem tolerância e na natureza das próprias pulsões sem satisfação plena possível.
O arcabouço teórico que sustenta a explicação do patológico (neurose), do normal (sonho) e da própria cultura (moral, religião, arte) é o famoso complexo de Édipo, onde o amor e o ódio para com as figuras parentais são vivenciados individualmente no nível de uma fantasia inconsciente como reatualização de um Édipo efetivamente consumado no começo da sociedade humana.
Com essa poderosa descrição, Freud pretende dar conta de um mal-estar intransponível que perpassa os indivíduos e todas as culturas. A receita de uma eventual reconciliação do mundo pulsional e da vida com as exigências do mundo da cultura, não se encontra no saber da psicanálise que não pode oferecer consolo algum. Cada um terá que encontrar sua própria salvação para enfrentar a dureza da vida e ninguém pode garantir que Eros leve a melhor sobre Thanatos.
Segundo Marcuse (1970), essa teoria da cultura é um reflexo do momento histórico específico em que foi formulada. A psicanálise freudiana envelheceu porque pensou o indivíduo e seu mal-estar dentro de uma sociedade monogâmica e de capitalismo industrial, quando a socialização do indivíduo se dava dentro do núcleo familiar onde a figura do pai representava o princípio de realidade. Com as mudanças sociais (sociedade de massa) e econômicas (sociedade de consumo), a socialização se dá prevalentemente fora da família. O declínio do papel do pai teria abalado as bases da teoria psicanalítica do superego como herdeiro do complexo de Édipo. “Nos setores mais avançados da atual sociedade, o cidadão já não se sente seriamente perseguido pelas imagens do pai” (ibidem, p.92).
Até psicanalistas (COSTA, 2000, p.7-30; BIRMAN, 1999, p.15-16) reconhecem que esse paradigma edípico já não dá conta teoricamente do quadro de patologias, de nossas formas de sofrimento e de novas modalidades de inscrição da subjetividade no mundo da atualidade. Lacan (1985, p. 11), por sua vez, percebeu que o superego repressor freudiano cedeu lugar a um superego que agora ordena ‘goza’, sem deixar de ser ‘figura obscena e feroz’.
Concluído esse tosco esboço de uma infelicidade que perpassa a Idade Média e a Modernidade na respectiva compreensão de Hegel e Freud, resta tentar responder a pergunta que mais nos interessa: é possível compreender e superar nossa consciência infeliz pós moderna? O que o filósofo e o psicanalista ainda podem nos dizer a respeito?

 
III. A consciência infeliz: da modernidade à contemporaneidade

Sem entrar na discussão da continuidade e/ou descontinuidade entre Modernidade e nossa contemporaneidade, é preciso reconhecer que, no próprio projeto da Modernidade já está presente esta tomada de consciência de que com ela ‘tudo o que sólido derrete-se no ar’ (MARX; ENGELS, 1998, p.14). O que é ‘novo’ na contemporaneidade é que os sólidos que estão sendo derretidos são os laços tradicionais que ainda sustentavam de alguma maneira o indivíduo no seu processo de subjetivação e de socialização: os grandes discursos legitimadores da religião, das ideologias fortes, do sindicado, da família estruturada em torno da figura paterna etc... .(BAUMAN, 1998; 2001).

Na época retratada por Freud, o mal-estar decorre de uma falta de liberdade, de uma excessiva e indevida repressão em nome da segurança. Hoje, essa é sacrificada no altar da liberdade, para não dizer do liberalismo, tornando o homem-deus pós-moderno, como o deus de prótese descrito por Freud, também um deus infeliz. Mas por que e de que sofre o deus pós-moderno?
Especialmente a partir do final da segunda guerra mundial, com significativa acentuação nas últimas décadas, o mundo conheceu macro mudanças político-econômico-culturais que desaguaram no fenômeno complexo da globalização. Ainda estamos totalmente mergulhados dentro dele para uma sua compreensão adequada, todavia um mínimo de distanciamento que possamos conseguir nos permite vê-lo na sua ambivalência, como aquelas figuras ambíguas estudadas pela Gestalt, ora parecendo uma coisa, ora outra, as duas imagens se alterando aleatoriamente sem conseguirmos nos fixar numa dela.
De um lado, proporcionou a produção e circulação de bens materiais e simbólicos sem precedentes. Por outro, gerou também uma sociedade de consumidores e excluídos, de ‘arrivistas e parias’, ‘turistas e vagabundos’ (BAUMAN, 1998).
De um lado reduziu o poder do Estado paternalista e de bem-estar social, forçando os cidadãos a se tornar criativos e empreendedores. Por outro, gerou e disseminou uma insegurança permanente e um sentimento de impotência diante da necessidade de cada um individualmente solucionar problemas que são de natureza essencialmente sociais.
De um lado, com a impressionante expansão das redes de comunicação (rádio, telefone, televisão, internet) tornou de fato nosso mundo uma verdadeira ‘aldeia global’. Por outro nos deixou a sensação que estamos entregue a um autoritarismo nada desinteressado dos caciques globalizados que são os donos dos Meios de Comunicação, muitos deles sucessores dos tradicionais donos dos meios de produção.
De um lado, esses meios de comunicação democratizaram a informação como nunca antes a humanidade tinha vivenciado. Por outro, geraram a cultura do narcisismo (LASCH, 1984) e a sociedade do espetáculo (DEBORD, 1986).
De um lado, o avanço científico, tecnológico e farmacológico parece prometer literalmente o céu (era espacial), a beleza, a juventude prolongada, a felicidade e o prazer ao alcance de uma operação plástica, de um antidepressivo ou de um remédio para disfunção erétil. Por outro, nossos ‘distúrbios de comportamento’ são remetidos totalmente à nossa responsabilidade quando não conseguimos atingir a performans física, profissional, afetiva e sexual esperada e exigida pela sociedade ou pelo parceiro.
De um lado disponibilizou e continua disponibilizando uma multiplicidade continuamente renovada de identificações e de estilos de vida para mediar nosso processo de subjetivação e socialização. Passamos de uma era de grupos de referência mais restritos para uma outra de comparação global. Por outro, somos intimados a nos inventar, criar e recriar, ser si próprios e livres, ‘subjetivar-se’, ‘fazer-se’ sujeito, ‘construir-se’ ‘desconstruir-se’ ‘flexibilizar-se’, ser uma metamorfose ambulante, desnorteados diante de tantos modelos identificatórios que parecem se equivaler e dificultando a escolha.
De um lado, a flexibilização do laço social e afetivo (BAUMAN; MEDEIROS 2004) entre as pessoas aumentou enormemente as possibilidades de escolha, de se construir na diferença e singularidade. Por outro, percebemos como é bem mais fácil e comum perder-se no anonimato das grandes cidades, na massificação, num amor volátil e volúvel.
Não é de estranhar se hoje a consciência infeliz, dilacerada entre demandas contrárias de singularização e de universalização, atende pelo nome de toxicomanias, síndrome do pânico (BIRMAN, 1999, p.178), distúrbios alimentares (bulimia, anorexia).e. especialmente de depressões.
Evidentemente, nem a filosofia, nem a psicanálise tem força suficiente para mudar o curso da história. Com toda probabilidade, tanto o negativo hegeliano quanto o mal-estar freudiano vão continuar dentro dela. Esse dado, porém, não pode ser o álibi de nosso descompromisso ético frente ao sofrimento e à infelicidade humana. Nesse sentido, há uma coincidência entre as duas análises hegeliana e freudiana que não nos parece forçada.
É possível, de fato, considerar a Fenomenologia de Hegel “como a verdadeira tragédia de Édipo, entendido como espírito humano inteiro, com esta diferença talvez de que o desvelamento final - o que Hegel chama ‘saber absoluto’ - permaneça ambíguo e enigmático” (HYPPOLITE, 1971, p.214).
Os ‘indivíduos’ - para Hegel - podem universalizar-se, elevar-se para o mundo de uma história que pode ser não de senhores e escravos e regida pela violência do mais forte, mas de iguais, de intercomunicação de consciências, de liberdades consentidas e reconhecidas reciprocamente, em suma, uma história, que pode e deve ser regida pela reciprocidade do consenso racional.
Quanto a Freud (1930, p.193-194), é verdade que ele não se apresenta como o profeta de um mundo reconciliado, mas no conflito desejo – cultura não se coloca do lado do desejo contra a Lei, nem desta contra aquele. Parece-nos que não é possível reduzir a mensagem do livro O Mal-estar na Civilização a esta expressão: onde havia superego cultural deve advir o ego, o que implica a necessidade de mediar as relações conflitivas do sujeito com a cultura por uma racionalidade. Nesse sentido, tanto o otimismo hegeliano quanto o pessimismo freudiano, ambos na sua lucidez que nada tem de ingênuo, parecem apontar para uma responsabilidade ética: construir um mundo pessoal e comunitário menos sofrido. A razão, a liberdade, a felicidade podem abrir seu caminho na história dos homens mesmo que sofridamente e a despeito da desrazão, da violência e da infelicidade que a perpassam.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


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_____; MEDEIROS, C.S. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004

BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1999.

DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997

FREUD, Sigmund. (1930) O Mal-Estar na Civilização. Trad. José Octávio de Aguiar Abreu. S. Paulo: Abril Cultural, 1978, p.129-194.

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HEGEL, G.W.F. Fenomenologia do Espírito: Parte I. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1992.

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___. Phénoménologie de l’Esprit. (Présentation, traduction et notes par Gwendoline Jarczyk et Pierre-Jean Labarrière). Paris: Gallimard, 1993.

HYPPOLITE, Jean. Genèse et structure de la Phénoménologie de l’Esprit de Hegel. Paris: Aubier-Montaigne, 1946.

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JARCZYK, Gwendoline e LABARRIÈRE, Pierre-Jean. Présentation, traduction et notes. Dans Phénoménologie de l’Esprit par G.W.F. Hegel. Paris: Gallimard, 1993, p.7-60.

LACAN, Jacques. O Seminário: Livro 20:mais ainda. 2.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985

LASCH, C. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1984

WAHL, Jean. La malheur de la conscience dans la philosophie de Hegel [1929]. Paris: PUF, 1951 (12.a ed.)

* Este texto foi escrito pelo professor Drº Vincenzo Di Matteo,  filósofo do Departamento de Filosofia da UFPE.